Conheço Martin e Pitty há década, desde que ela morava no Rio, com seus colegas de Pitty, e ele, em Salvador, com os irmãos do Cascadura. O tempo os uniu como banda e agora os separa do quarteto, como duo – Agridoce. Experiência sonora despretensiosa que começou com encontros nos sábados à tarde na casa dela para verem o que saía quando experimentavam terrenos novos.
Por terrenos novos, entenda ela ao piano e voz e ele à guitarra ou violão.
Foram se divertindo até perceberem que tinham repertório na mão, que após período enfurnados em um sítio (a casa, a que ela se refere) virou o lindo, lindo disco de estreia. Talvez o melhor da cena brasileira do ano que passou.
Agora lançam DVD ao vivo e experimentei assistir a ele como se não soubesse nada da trajetória deles como Agridoce para poder fazer a entrevista abaixo.
O mais estranho, visto de fora, é que os dois foram criando uma musculatura dentro de carreira no rock. Em tudo – das tatuagens até postura no palco e posicionamento com a mídia. Do que vocês precisaram se despir para encarar o mundo como Agridoce?
Pitty - De todos os estereótipos, expectativas e projeções externas. Se despir do medo de olhar pra dentro e deixar a coisa fluir sem racionalizar demais sobre o que estava acontecendo.
Martin – Das expectativas de corresponder a essa musculatura, mas não houve um esforço da nossa parte para se despir disso, foi tudo muito natural uma vez que essa perspectiva que temos dentro do Agridoce sempre existiu, só não tinha sido exercida como é agora.
(Para Pitty) O nome da banda é Pitty, a front(wo)man é Pitty, as letras são Pitty, composições, roteiros de vídeo, praticamente todas as decisões. Pitty, você topou dividir igualmente a responsabilidade agora por quê? 1. Se sente menos segura, tendo que encarar gênero e instrumento novos? 2. Como é projeto novo, quis que toda logística fosse diferente? 3. O processo direcionou para isso? 4. Nenhuma das alternativas
Pitty - O projeto direcionou para isso. Nasceu assim, aconteceu assim. E é bom ter com quem dividir as coisas dessa forma. Na minha banda principal eu sempre tive esse delírio de que um dia ia conseguir uma divisão de tarefas, peso e visibilidade; mas a coisa não funciona desse jeito na prática. Por mais que eu tentasse estar sempre com os meninos em fotos e vídeos e mesmo internamente adotando uma política democrática nas decisões artísticas, a demanda e a responsabilidade maior caíam sempre no meu colo- acho que por tudo isso que você citou; é meu nome, estar na "linha de frente" com o microfone na mão, ser compositora. Mesmo no Agridoce ainda é uma batalha para nós deixar claro que é uma dupla, de peso igual. O trabalho constante é os dois responderem entrevistas, eu não aparecer sozinha, firmar essa ideia do duo a cada passo; se deixarmos solto já percebemos que caminha para o lado de "disco acústico de Pitty", ou a divulgação do show apenas como "Pitty". Batemos nessa tecla o tempo todo para deixar claro o que a coisa é. Entendo perfeitamente que isso acontece porque as pessoas já me conhecem e ainda não conheciam tão bem o Martin, meu nome acaba tendo mais peso e é natural que queiram usar isso. Aos poucos, tomando esses cuidados que citei, as pessoas vão entendendo e se acostumando com o fato do Agridoce ser uma dupla.
(Para o Martin) – Você era o guitarrista, e dividia a bronca com baixista, baterista. Agora é você e você – frontman. Como é isso?
Martin – É divertido, novo, empolgante e desafiador. Já tinha experimentado isso numa escala bem menor com o Martin e Eduardo mas agora a coisa vem em outra proporção. Tem sido muito bom e tenho certeza de que vou sair dessa experiência com uma bagagem artística e estratégica muito mais rica. Tanto lidar com o público tão de perto quanto participar das decisões empresariais têm sido a maior e melhor escola que já frequentei.
Vocês falam que começaram meio na brincadeira. Mas com o status de vocês na música, obviamente iriam querer gravar qualquer espirro de vocês. Vocês tinham noção disso? Sem falsa modéstia, por favor
Martin – Literalmente não. Sempre soube que um projeto que envolvesse uma artista do calibre de Pitty chamaria a atenção da mídia e dos fãs mas sempre acreditei que o caráter singular desse projeto se distinguiria dessas expectativas. Temos uma resposta muito distinta nesse trabalho da que tínhamos como banda Pitty, as reações são muito mais específicas, sem um caráter tão explosivo e imediato. Ao contrário do que muita gente diz acho que fizemos um dos discos mais "difíceis" da nossa carreira.
Após, sei lá, dez anos de carreira (é isso, né? Não estou contando Inkoma), já existia uma lógica de reação ao que vocês faziam – público com características e personalidade definidas, turnê, até mesmo reação de mídia (um discurso meio que pronto para qualquer nova ação de vocês). Aí muda tudo – muda dinâmica do grupo, muda público (imagino), muda som...Ou seja, tinham uma estrada conhecida (com seus buracos e curvas e retas), agora encaram uma nova. Como está sendo essa nova e o que mais os surpreende/u?
Pitty - Havia esse desejo de experimentar uma estrada nova, sair da zona de conforto e se arriscar. Tem sido ótimo observar essas mudanças ao redor, especialmente de público e de dinâmica de palco. Reação de mídia considero dúbia; ao passo que alguns realmente pararam para ouvir como uma coisa nova, sem preconceitos, outros ainda continuam atrelados ao discurso pronto e à prepotência de achar que já sabem tudo sobre nós. Mas abriram-se novas janelas, e isso é ótimo. O que mais me surpreendeu foi chegar em palcos populares, de Viradas e festivais e perceber gente interessada e atenta mesmo que não soubesse exatamente o que era aquilo. Gente a fim de prestar atenção, e depois decidir se gosta ou não.
As músicas são de uma beleza em melodia, harmonia, letras irretocáveis. Com todos que falei é meio que unanimidade o bom gosto que vocês atingiram. De onde sacaram essas cartas , pois é a primeira vez (aparente) que arriscam esse caminho de composição?
Pitty - Não sei bem. Da alma, da despretensão, do despojamento, talvez. Fico feliz de saber que bate dessa forma do outro lado. Só havia, na hora de compor, a liberdade de fazer tudo que desse vontade. E resultou em coisas bem particulares, pensamentos e sensações muito íntimos daqueles que você só compartilha com quem você confia. Talvez seja a coisa de fazer música sem ter uma consciência plena de que aquilo será escutado por muita gente. Não sabíamos disso na época, e era só nosso mundinho particular. Mas pensando bem, essa liberdade talvez não seja a única responsável já que ela sempre existiu em todos os discos. Acho que pode se somar aí o tempo, a idade, que vai engrossando o repertório de referências. Na gravação, como já sabíamos que seria lançado e as pessoas iam escutar, as escolhas de timbres, texturas e arranjos foram conscientes; então talvez o tempo seja o cara nesse sentido de te dar mais experiência para fazer escolhas.
Martin – Apesar de já termos algumas parceiras anteriores a coisa nunca se deu tão colaborativamente quanto no Agridoce. Todo o processo foi muito desafiador e a cada momento aprendemos algo novo, seja sobre compor, arranjar ou gravar. Acredito que uma parcela muito significativa desse resultado se deve a esses desafios e a essas dinâmicas novas a que nos permitimos. O Agridoce sempre foi também um ambiente muito acolhedor e isso gera uma sensação de segurança e liberdade que abriu perspectivas criativas de nós dois individualmente. Eu fiquei muito surpreso e encantado com a Pitty que desabrochou ali.
Qual é a história favorita de vocês do Agridoce até agora?
Pitty - Ih, tem várias. Da gravação gosto da história de "130 Anos", que nasceu lá na casa. Estávamos fazendo um som na beira da piscina e era um dia de sol, de repente Rafael desceu com o gravador de rolo e ela acabou sendo registrada ali mesmo, com um microfone, em apenas um canal. Por isso os passarinhos e o barulho de água; isso tudo vazava nesse único microfone. Gosto também da história da bateria inventada de "Rainy". Queríamos uma batida nessa música, e não tínhamos uma bateria. Já havíamos usado samples à beça. Ficamos experimentando até encontrarmos a solução que acabou ficando: uma espécie de "air drums" com uma pandeirola batendo na perna como caixa, um guizo nas mãos como chimbal e uma gaveta como bumbo. Mas a mais inesperada pra mim é a história de "Beethoven Blues"...
Martin - O que poderia ser considerado o nascimento oficial do Agridoce. Cheguei na casa dela umas 14h00 e passamos o resto do dia entre fazer um rango, arranjar a música, beber, gravar, conversar, mixar e por volta de 00h00 postamos "Dançando" no Myspace que tínhamos acabado de fazer (tooosco...). Foi uma experiência muito gratificante, essa sensação de autonomia e autosuficiência, e acredito que ambos saímos tranformados e de certa forma viciados dali.
Pergunta inevitável: Agridoce tomou o lugar da (banda) Pitty, pretendem conciliar os dois, pretendem retornar à banda ou o quê?
Pitty - Não acho que ninguém tomou o lugar de ninguém, pra mim são duas coisas bem diferentes e cada uma tem seu espaço na minha necessidade interna. Pretendo deixar rolar, penso em gravar disco novo de rock com a banda assim que tiver repertório e vontade. Acho possível conciliar, mas nem sabemos se vamos fazer outro disco do Agridoce, ou quando... é deixar as coisas irem acontecendo mesmo.
Partilhar